SAN DIEGO – Escutamos cada vez mais falarem sobre a genética nos meios de comunicação, seja na luta contra o câncer ou na prevenção de doenças raras. Mas esta ciência relativamente nova se torna cada vez mais complexa de se compreender, mesmo para os cientistas. Para ver as coisas mais claramente, o Criasaude teve a oportunidade de entrevistar a Dra. Julia di Iulio (foto), uma especialista em genética que atualmente trabalha na Human Longevity Inc., uma empresa vanguardista na área da genética sediada em San Diego na Califórnia, e co-fundada pelo famoso cientista americano J. Craig Venter. A Dra di Iulio é um farmacêutica que cresceu no Brasil e na Suíça. Ela estudou farmácia na Suíça na Universidade de Lausanne em Genebra, realizou seu doutorado no Lausanne University Hospital (CHUV) e depois cruzou o Atlântico em 2013 para se juntar à renomada Harvard Medical School, em Boston, onde se especializou em genética. Em 2017, fizemos-lhe perguntas principalmente sobre notícias recentes, especialmente sobre CRISPR. Em outubro de 2020, soubemos que o Prêmio Nobel de Química havia sido concedido à francesa Emmanuelle Charpentier e à americana Jennifer Doudna. Estas duas geneticistas desenvolveram “tesouras moleculares” (CRISPR) capazes de modificar os genes humanos, um avanço revolucionário.
AVISO, entrevista realizada em 2017, o artigo foi ligeiramente atualizado após o Prêmio Nobel de Química em outubro de 2020.
Criasaude.com.br – Pode ser lido em um artigo da Bloomberg Businessweek de 01 de junho de 2017 (referências na parte inferior do artigo) que a tecnologia de edição de genes CRISPR, em interação com a proteína cas9 (em inglês falamos de Crispr-Cas9) é a maior descoberta do século 21 em termos de impacto sobre o futuro da raça humana. Mas o que é o CRISPR? Como explicar esta tecnologia de forma simples para o público em geral?
Se uma das instruções deste livro não está correta (por causa de um erro ortográfico, por exemplo), a tecnologia CRISPR permite modificar ou eliminar uma palavra que compromete a instrução. Em mais detalhe, esta técnica age em 2 etapas: (1) a palavra de interesse é pesquisada ao longo de todo o livro, e (2) uma vez que é localizada, ela será modificada ou excluída. Como você pode imaginar, quando a palavra em questão é corrigida, o significado das instruções do livro podem mudar drasticamente. Imagine que o livro contém a frase “eu trabalho limpando casas” e que a CRISPR é feita para detectar a palavra ‘casas’ e substituir por ‘caras’. A frase assume um significado totalmente novo “eu trabalho limpando caras”!
Em um livro (referenciado na parte inferior do artigo) que ela co-escreveu, a Dra. Jennifer Doudna, pesquisadora da Universidade da Califórnia em Berkeley que é uma dos 2 cientistas que publicaram o primeiro artigo científico sobre tecnologia Crispr, se pergunta se: “Ela não criou um monstro?”. Um pouco como a tecnologia nuclear que pode ser usada para fins úteis (ex. eletricidade) ou destrutiva (ex. guerra). Sabemos que os nazistas eram grandes fãs de genética durante a 2ª Guerra Mundial, com notavelmente a eugenia. Você vê algum risco de uso indevido da Crispr? Se sim, como esses riscos podem ser minimizados ou maximizados?
Sim, é claro, pode haver riscos se esta tecnologia for mal utilizada. Mas, na minha visão, as pessoas mal-intencionadas, infelizmente, sempre encontrarão uma maneira de prejudicar independente de quais sejam os meios, geralmente prefiro focar no lado positivo. Neste caso, penso que com esta tecnologia muitas doenças podem ser curadas e prevenidas na próxima década.
Apenas em relação à Crispr, no início de agosto de 2017 os pesquisadores norte-americanos da Oregon Health and Science University disseram que conseguiram reparar um gene deficiente diretamente em um embrião usando o método Crispr. Este gene defeituoso é responsável pela doença cardíaca matando jovens atletas. O experimento foi realizado em laboratório, os embriões modificados com sucesso não foram implantados ou permitidos se desenvolverem. Este estudo publicado na Nature abre a porta para uma edição (modificação) de genes diretamente no nível embrionário para o melhor, como a prevenção de doenças genéticas; mas também para o pior, como a eugenia. O que você acha das questões éticas levantadas por este estudo revolucionário?
A interpretação dos resultados deste estudo ainda é controversa. No entanto, sejam esses resultados reais ou não hoje, provavelmente serão em um futuro próximo. Penso que o principal desafio ético será determinar quais doenças serão consideradas perigosas o suficiente para serem tratadas dessa maneira. O risco é que esta técnica se torne tão fácil de implementar e seja utilizada de forma abusiva para modificar, por exemplo, caracteres físicos em vez de doenças genéticas. No entanto, este desvio é improvável, pois a grande maioria das características físicas (como a cor dos olhos) é resultado da combinação ou interação de várias frases do livro e não apenas uma palavra como se pensava no passado.
Em resumo, se no futuro as autoridades permitirem a implantação de embriões modificados, serão necessários regulamentos rigorosos para evitar qualquer uso excessivo.
Eu li em um artigo do Wall Street Journal em 4 de julho de 2017 que a Crispr também pode diagnosticar doenças como, por exemplo, uma infestação humana do vírus Zika. Eu admito ter um pouco de dificuldade em entender como a Crispr pode ser utilizada como um método de diagnóstico, você pode nos dar mais explicações?
A tecnologia Crispr pode ser ligeiramente transformada para que a palavra de interesse, em vez de ser modificada ou excluída como mencionado acima, seja “estabilizada” ou a página do livro que a contém seja marcada com um “post-it fluorescente”. Se o objetivo é diagnosticar o Zika vírus, é possível escolher uma palavra que esteja presente apenas nas instruções fornecidas pelo vírus e não pelas do hospedeiro (o humano). Em outras palavras, a palavra de busca virá de outro idioma (o do Zika vírus) e o livro terá um post-it fluorescente somente se essa palavra do idioma estrangeiro for encontrada. Esta estratégia, portanto, permite detectar uma célula humana infectada com o Zika vírus.
Com cerca de 50 trilhões de células em um ser humano, como você se certifica de que a tecnologia Crispr atinja todas essas células?
Eu acho que a maioria das aplicações exigirá que o Crispr seja entregue localmente em vez de generalizado. Na verdade, muitas funções celulares são utilizadas apenas em certos lugares do nosso corpo, e é por isso que temos tantos tipos de células diferentes (por exemplo, as células dos olhos são diferentes das células do estômago, porque embora contenham o mesmo livro de instruções, eles não seguem o mesmo conjunto de instruções). Portanto, é inútil modificar uma determinada instrução na célula se for conhecido antecipadamente que essa célula não precisa desta instrução para funcionar. Explico esse fenômeno com mais detalhes na próxima pergunta.
Você pode explicar em poucas palavras o que é a epigenética?
Todas as células do corpo humano contêm o mesmo genoma, ou seja, o mesmo livro com as mesmas palavras. No entanto, como discutido acima, nossas células podem ter funções muito diferentes umas das outras (por exemplo, o papel das células musculares é claramente distinto do das células cerebrais). Isso significa que as instruções escritas no livro devem, de uma forma ou de outra, ser interpretadas ou lidas especificamente por cada tipo de célula. E isso é possível graças à epigenética. Se considerarmos que o genoma é o livro que contém todas as palavras usadas para escrever as instruções, a epigenética pode ser vista como a pontuação. Mudar a pontuação de uma frase pode alterar profundamente seu significado, mesmo que as palavras permaneçam iguais. Como exemplo, “Vamos comer, vovó” e “Vamos comer vovó” são duas frases semelhantes, mas interpretadas de uma maneira totalmente diferente. Outro exemplo de modificação do livro pela pontuação é a introdução de parênteses. Os parênteses em torno de uma frase no livro indicam à célula que não há necessidade de seguir uma instrução.
Às vezes é esquecido, mas o câncer é uma doença genética, me diga se estiver errado. Isso significa que as células cancerígenas se desenvolvem especialmente durante erros na divisão celular. Como você explica que a genética realmente não conseguiu colocar no mercado tratamentos contra o câncer?
O câncer é realmente o resultado de erros ortográficos no livro que contém as instruções. Na maioria das vezes, essas falhas aparecem em dois tipos de frases: (1) instruções que sinalizam para a célula que seria bom esperar antes de dividir e criar novas células e (2) instruções que exigem que a célula releia o livro e corrija qualquer erro ortográfico se houver algum. Portanto, é um círculo vicioso, porque a célula não só continua a dividir quando não deveria (o que cria um conjunto de células que não obedecem às instruções), mas também tendem a conter mais erros ortográficos (porque eles não se corrigem mais) e, portanto, a probabilidade de alterar outras instruções aumenta!
Os erros ortográficos podem ser herdados, isto é, eles podem ser transmitidos a um indivíduo por um de seus pais, então dizemos que alguém tem uma predisposição ao câncer. No entanto, na maioria das vezes, essas falhas são “adquiridas” durante a vida, especialmente através de fatores externos, como a exposição a raios UV. Por exemplo, quando você deixa um livro ao sol, a tinta pode ficar mais clara e pode ficar mais difícil de ler certas frases. Existe uma reação semelhante, análoga a essa, que acontece em nossas células da pele: os raios UV podem alterar as letras do código genético e, portanto, as instruções do livro.
A dificuldade em tratar o câncer vem do fato que cada câncer é diferente. Mesmo se alguém utiliza o termo genérico “câncer”, de fato, os erros ortográficos que levam a um certo tipo de câncer não ocorrem necessariamente na mesma palavra em indivíduos diferentes. E para complicar as coisas ainda mais, um tumor pode ser “heterogêneo”, o que significa que contém diversos erros ortográficos. A chamada terapia “direcionada” parece ser uma estratégia básica para superar o câncer. Recentemente, pesquisadores norte-americanos desenvolveram um tratamento que envolve o uso de células imunes de um paciente, modificando-as para que elas reconheçam especificamente células cancerígenas nesse mesmo indivíduo (o medicamento Kymriah®, da empresa suíça Novartis). Esta terapia que acaba de ser aprovada nos Estados Unidos é um exemplo de uma medicina personalizada.
Sempre se fala de farmacogenômica como um conceito de medicina personalizada, seja para ajudar o médico a escolher um medicamento mais efetivo (por exemplo, sabemos que certos medicamentos como os antidepressivos funcionam em algumas pessoas e não outras) ou para prevenir alguns efeitos colaterais, às vezes graves, de certos medicamentos como sinvastatina ou carbamazepina. Por exemplo, algumas pessoas que tomam sinvastatina (uma estatina) e têm o gene SLCO1B1 são 17 vezes mais propensas a ter uma inflamação muscular grave. Você sendo uma farmacêutica e que está familiarizada com os medicamentos, qual a sua visão sobre farmacogenômica? Atualmente a impressão é que, em geral, na Europa e nos Estados Unidos esta idéia é considerada boa, mas ainda pouco aplicada em grande escala ou de forma sistemática, você compartilha essa análise? Não deveria o farmacêutico ou o médico oferecer sistematicamente um teste genético para cada medicamento administrado?
Penso (e espero) que a farmacogenômica vai revolucionar o sistema de saúde. Somos TODOS diferentes e esse conceito é surpreendentemente pouco levado em consideração no sistema de saúde, embora isso pareça óbvio em muitas outras áreas (por exemplo, quando compramos roupas não podemos imaginar ir a uma loja onde eles vendem apenas um tamanho).
Os resultados não só são benéficos para a pessoa que recebe o tratamento medicamentoso, ou seja, com menos efeitos colaterais é mais provável que o medicamento seja eficaz, portanto, melhor aderência ao tratamento (o que pode ajudar a prevenir a resistência ao tratamento e, portanto, falhas terapêuticas). Além disso, a medicina personalizada pode reduzir os custos da saúde em grande escala. De fato, o custo inicial dos testes genéticos é compensado a longo prazo, considerando (i) o número de hospitalizações devido a efeitos colaterais que serão evitadas, (ii) o número de consultas médicas que serão evitadas se o paciente receber tratamento direto e não precisar voltar para o médico para mudar o tratamento, (iii) a quantidade de medicamentos que serão economizados se identificarmos, graças ao teste genético, os indivíduos que necessitam de uma dosagem mais baixa e (iv) o número de medicamentos que falharam na fase pré-clínica porque não passaram nos testes de eficácia, quando na verdade eles podem ser perfeitamente eficazes para uma parcela da população (que pode ser identificada através de testes genéticos).
O meu argumento final para o uso da farmacogenômica em larga escala é que quanto mais indivíduos receberem testes genéticos, maior a chance de encontrar novas associações entre a genética e a resposta à medicamentos. E quanto mais compreendermos a genética, podemos orientar as decisões farmacogenômicas melhor, e assim por diante.
Julia di Iulio gostaria de agradecer Stefania di Iulio, Angela Ciuffi e Kim Pelak pela revisão e discussões que a ajudaram a responder as perguntas o mais claro possível.
Entrevista realizada por e-mail por Xavier Gruffat (Criasaude.com.br/Creapharma.ch) entre agosto e setembro de 2017. A introdução foi atualizada em 7 de outubro de 2020, após o Prêmio Nobel de Química. Créditos fotográficos: Fotolia.com, página do LinkedIn de Julia di Iulio para sua foto
Foto de San Diego, onde ela trabalha
Referências das perguntas:
– Artigo de Bloomberg Businessweek : https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-06-01/one-of-crispr-s-creators-faces-her-fears
– Livro da Dra. Jennifer Doudna e do Dr. Samuel Sternberg : A Crack in Creation: Gene Editing and the Unthinkable Power to Control Evolution
– « The Patient Will See You Now », pelo Dr. Eric Topol, 2015, Basic Books, New York.